terça-feira, 11 de março de 2014

Texto por Francisco Duarte Mangas


A fotografia e um arado

data um dos trabalhos que me fascina na obra de Domingos Silva. Quando o vi pela primeira vez, de súbito veio à memória um  verso de Papiniano Carlos: “O arado luminoso”. Revisito-o agora, e viajo pelo Minho antigo, a fatal lavoura que aturdia as madrugadas de Maio . Em certos regressos à infância, o que se encontra à chegada são aromas, alguns sons, um gesto de luz, um afago maternal. Reminiscência da alegria. A obra que me devolve um tempo perdido chama-se Lavrador II. E, aparentemente, nenhuma réstia de  felicidade antiga encerra. Há incursões no passado que começam assim: a dor antiga desagua num suave traço de luz.
Vejo, só agora vejo, a cor da canga: vermelha como o colete do lavrador. A mesma cor jugula o homem e o humilde gado. Subtil metáfora de servidão cruel: o homem e os animais,  que domesticou , no mesmo limiar. Uma homem só, uma junta de bois, um arado luminoso a rasgar a dureza da terra. Trabalho árduo - “charrua em campo de pedra”, diria José Manuel Mendes - , tanto que o camponês, mãos cativas às rabiças, parece multiplicar-se; a mesma alquimia desdobra os animais, abrem a boca num frémito de sofrimento. Domingos Silva, com engenho e arte, do compesino solitário faz a alegoria de gerações emaranhadas numa gleba amarga.

…O Domingos Silva é um pintor do Minho, ou da Póvoa de Lanhoso se apertarmos a malha, ou de Travassos, se se optar pela minúcia de ourives. Dito isso, assim, com esta crueza será, de novo, seguir por carreiro ínvio. Pelo lado errado das coisas. A arte, mesmo que o silêncio oficial queira amortalhar o criador, a arte é e sempre será apátrida – porque o arado criativo sulca a terra em qualquer geografia.

Francisco Duarte Mangas

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