terça-feira, 11 de março de 2014

"A AURA DAS COISAS" por Vergílio Alberto Vieira


A AURA DAS COISAS

   …  Herdeiro dessa memória profunda com que os artesãos, ao longo dos séculos, aprenderam a contornar os limites da técnica, que o ofício do ouro deles exigia, não parece difícil reconhecer que Domingos Silva, nascido pelo ano de 1955, em Travassos, Póvoa de Lanhoso, no seio de uma família de ourives, não desmereceu do oráculo que o dava como artífice, um desses artistas para quem a vida das formas se tornou parte de um sonho criador, que ele persegue, a seu modo, substituindo o estilo pela construção de um espaço e forma pessoais a que tem dado corpo, e alma, unindo-os numa artesania  artística, tão antiga como a que, há milénios, inspirou os gravadores de ouro Citas, ao longo da estepe siberiana, e dos homens de ofício medievais, em cujas matrizes se inscrevem o imaginário e o engenho do artista.
       …O seu segredo é simples, luminoso como o disco lunar, e denso como tudo o que, entre a luz e a sombra, obscuramente se revela, e quando nos ares desta pintura perpassam as nuvens coloridas de um Marc Chagall, ou no grés das suas marcas se detectam as pegadas de um Júlio Resende, de um Luís  Dourdil, e nas esculturinhas reminiscências de José de Guimarães.
Apesar disso, não esconde a impaciente inquietude que o desprotege, e descalça, para aquela peregrinação interior que o leva pelos caminhos de uma ascese pagã que o impulso criativo, a reabilitação primitiva de materiais (quase inconcebíveis) e a irradiação incontrolada de energias, não apenas confirmam, como explicam em que medida a sua pintura, instalações, esculturas e outras incatalogáveis derivações, transferem a sua visão do mundo para um peculiar situacionismo, criador de situações, de que o consentimento humano não pode sair senão abalado.
     Nessa conformidade, eis como a beleza, com que aura das coisas se abre à revelação da divindade, preenche a sábia completude do artista, que elegeu a natureza como lugar de aparição, e o seu potencial criativo como apelo de origens, e rito de iniciação. Não porque se revele incómoda, para o artista, a consciência tentada entre o figurativo e o seu oposto; entre a matéria e a mestria que a diversidade dele exige, mas antes pela aparente ingenuidade que coroa o real em Domingos Silva, um real que, de tão próximo, e aproximativo, ora exalta a forma de vida do artista, ora inflecte para a vida das formas que é seu mester trazer para o dia, sem declinar da missão de fazer de cada coisa, e esse é o mais sério particular da sua arte, um poema contínuo, e do artista, pelas encostas do Ave, pastor de auras, e de luas.

                                                     Vergílio Alberto Vieira      Maio de 2010

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