A AURA
DAS COISAS
…
Herdeiro dessa memória profunda com que os artesãos, ao longo dos
séculos, aprenderam a contornar os limites da técnica, que o ofício do ouro
deles exigia, não parece difícil reconhecer que Domingos Silva, nascido pelo
ano de 1955, em Travassos, Póvoa de Lanhoso, no seio de uma família de ourives,
não desmereceu do oráculo que o dava como artífice, um desses artistas para
quem a vida das formas se tornou parte de um sonho criador, que ele persegue, a
seu modo, substituindo o estilo pela construção de um espaço e forma pessoais a
que tem dado corpo, e alma, unindo-os numa artesania artística, tão antiga como a que, há
milénios, inspirou os gravadores de ouro Citas, ao longo da estepe siberiana, e
dos homens de ofício medievais, em cujas matrizes se inscrevem o imaginário e o
engenho do artista.
…O seu segredo é simples, luminoso como
o disco lunar, e denso como tudo o que, entre a luz e a sombra, obscuramente se
revela, e quando nos ares desta pintura perpassam as nuvens coloridas de um
Marc Chagall, ou no grés das suas marcas se detectam as pegadas de um Júlio
Resende, de um Luís Dourdil, e nas
esculturinhas reminiscências de José de Guimarães.
Apesar
disso, não esconde a impaciente inquietude que o desprotege, e descalça, para
aquela peregrinação interior que o leva pelos caminhos de uma ascese pagã que o
impulso criativo, a reabilitação primitiva de materiais (quase inconcebíveis) e
a irradiação incontrolada de energias, não apenas confirmam, como explicam em
que medida a sua pintura, instalações, esculturas e outras incatalogáveis
derivações, transferem a sua visão do mundo para um peculiar situacionismo,
criador de situações, de que o consentimento humano não pode sair senão
abalado.
Nessa conformidade, eis como a beleza, com
que aura das coisas se abre à revelação da divindade, preenche a sábia
completude do artista, que elegeu a natureza como lugar de aparição, e o seu
potencial criativo como apelo de origens, e rito de iniciação. Não porque se
revele incómoda, para o artista, a consciência tentada entre o figurativo e o
seu oposto; entre a matéria e a mestria que a diversidade dele exige, mas antes
pela aparente ingenuidade que coroa o real em Domingos Silva, um real que, de
tão próximo, e aproximativo, ora exalta a forma de vida do artista, ora
inflecte para a vida das formas que é seu mester trazer para o dia, sem
declinar da missão de fazer de cada coisa, e esse é o mais sério particular da
sua arte, um poema contínuo, e do artista, pelas encostas do Ave, pastor de
auras, e de luas.
Vergílio Alberto Vieira Maio
de 2010
Sem comentários:
Enviar um comentário